Autoria do Prof. Rodolpho Caniato
Depois de viver uma infância tipicamente urbana em Copacabana, havíamos mudado para um sítio em Corrupira, no bairro dos Fernandes. Das luzes do melhor do Rio de Janeiro para a escuridão imaculada daquele sertão paulista. Eu tinha nove anos. Logo depois se iniciava a Segunda Guerra Mundial. Para mim, as luzes da jovem e vaidosa Copacabana eram substituídas pela escuridão, pelo céu estrelado e também pelo luar do sertão, coisas que nunca vira nem imaginara. O céu da cidade, cuja presença nunca notara, agora se apresentava num esplendor que me deixou deslumbrado. Era preciso aprender a andar na escuridão, pelos caminhos rústicos trafegados apenas a pé, por carroças ou animais. O luar desconhecido na vida da cidade, além da poesia, tornava os caminhos bem visíveis; mudava muito a vida da gente.
Das noites no sertão ficaram em mim impressões e lembranças que nunca se apagariam. Além do luar e do céu estrelado, a familiaridade com todo um mundo de ruídos da noite: os latidos distante dos cães que guardavam terreiros, as corujas e os curiangos piando seus solos e, como grande “fundo”, o coaxar da saparia pelos brejos. Se todo o mato tem uma grande variedade de ruídos noturnos, os brejos têm algo de especial. Aí vivem, numa imensa variedade e proximidade, sapos, sapinhos, sapões, rãs e pererecas, além de aves, cobras, preás e uma multidão de insetos aéreos e terrestres. No verão, essa variedade se enriquece com vaga-lumes que riscam com sua suave luz a escuridão da noite. É interessante notar que essa espantosa diversidade de seres vivos “dá expediente” e “funciona” plenamente na mais completa escuridão.
Algumas dessas “descobertas” pude fazer muito cedo, ainda criança. Com um precário lampião a querosene ou com a mais “avançada tecnologia” da época, um lampião a carbureto. Com ele fazia “expedições” para pescar em pequenos riachos ou para caçar rãs, logo depois das chuvas. A simples presença de uma pequena luz, não só mostra como alvoroça toda a vida do brejo a seu redor. A forte impressão da grande variedade e a presença perturbadora da luz sobre a vida do brejo ganhariam no futuro, para mim, um significado muito maior. É que meu avô paterno, como muitos outros vizinhos, era viticultor, italiano, e andava muito ansioso por notícias da guerra, que alvoroçava toda a vida da Europa e, em particular da Itália. Naquele lugar ermo, sem luz, a única maneira de obter alguma notícia seria um rádio. Não só não se tinha rádio como não havia vestígio de iluminação elétrica na região. A única lâmpada ficava na distante estaçãozinha de Corrupira, a alguns quilômetros de casa. Seria preciso arranjar um rádio e algo muito mais difícil: produzir a necessária energia elétrica.
Não só me lembro como acompanhei cada passo e ajudei meus tios a montar uma mini hidrelétrica para fazer funcionar o velho e grande rádio que mais parecia um armário, tendo seu interior preenchido por grandes lâmpadas: as “válvulas”. Obviamente, se esperava que, além de fazê-lo funcionar, a mini-hidrelétrica deveria acender também algumas lâmpadas para diminuir a escuridão em que todos vivíamos imersos à noite. Depois de semanas de trabalho, finalmente o pequeno “dínamo” de carro começou a rodar, acionado por uma polia acoplada à roda d´água de uns três metros de diâmetro. Esta por sua vez era tocada pela água, num pequeno desnível em nosso regato, que passava próximo ao brejo.
Com grande expectativa e ansiedade, o velho rádio foi ligado na presença de vários vizinhos que haviam acompanhado e esperado aquela montagem. As ondas curtas só podiam ser sintonizadas à noite, mesmo porque de dia todos trabalhavam na enxada. Mais que alguma notícia fragmentada, o que mais se ouvia daquele rádio eram ruídos: silvos, “pipocas”, assobios, estalos e “descargas de estática”. Mesmo assim, nossos vizinhos mais próximos, vinham para saber se se havia conseguido algum fragmento de notícias da guerra.
Juntamente com a “linha” constituída de dois arames, que trazia e energia elétrica do dínamo, instalado lá no rio, próximo ao brejo, meus tios haviam instalado uma lâmpada para iluminar o caminho para algum reparo à noite. Aquela lâmpada, muito fraquinha, não iluminava muito mais que nossos lampiões a querosene. Ela ficava sobre um pequeno poste à beira do cominho que, pelo brejo, ia da casa até a pequenina “usina”. Apesar de fraca, aquela lâmpada, instalada na beira do brejo, alvoroçou toda vida que até então ali se desenrolava normalmente em plena escuridão.
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Querido Professor!
Gosto das madrugadas, não para sair à busca do que não perdi, mas pelas descobertas que elas me proporcionam. Mais um vez, deparo-me com um texto adoravelmente saboroso. Note-se que meus superlativos são meu pecado, risos. Havia lido e amado aquela paixão que ficou em “Não olhe para um único foco de luz!” sem ter-me deparado com o texto anterior, que hoje descubro aqui no site. O primeiro raminho que deu origem ao ninho de doces lembranças, seguido de observações não comuns aos que não olham ao redor, ou, se olham, não veem. Saboreei cada palavra! Toda a história, real e tão vívida, que não há como não sentir como se também lá estivesse. O Brejo, A Guerra e o Rádio, traçados por palavras, transpostas para o papel e posteriormente entregue a nós, os daqui, como presentes que agradam.
Minha infância não teve brejo, nem a explosão de luzes de uma Copacabana que explodia em cores, ditames e influências, mas havia nela tanta descoberta e mesmo que os “sapos” que caminharam comigo não morressem por conta da luz, os vi, a eles e aos demais viventes do brejo, lendo seu relato. Não sou filha da 2ª Guerra Mundial, sou neta da 1ª! Filha de alemão, neta dos alemães de Volga, fugitivos do martírio imposto aos meus antepassados, como a tantos outros. Nasci brasileira por um belo e feliz acaso e não vivenciei os terrores da 2ª Guerra tão injusta quanto a 1ª, mas trago na genética o odor fétido de massacres desnecessários! E do rádio tenho os primeiros contatos com um mundo bem mais vasto que os campos por onde brincava,mesmo sendo citadina.
Sinto-me recompensada por haver comentado seu texto posterior. Há lembranças em ambos e lembranças são os pequenos retalhos de uma vida, que de pedacinhos em pedacinhos formam uma enorme tecelagem colorida, entrelaçadas por veias que fizeram-se linhas, pontos que senão findos, formaram a interrogação…
Novamente, agradeço por ter nascido com essa sagacidade em ler,ler e ler, mesmo que não tendo aprendido com tudo que li, por vezes pela preguiça em pensar, mas confesso, lendo faço minhas viagens. Vou como carona em histórias de outros e há histórias tão fascinantes que as viagens são o conforto para o antes do deitar-se. Neste instante acontece isso! Mais uma vez, ao dormir, talvez sonhe com um brejo iluminado, onde seres antes passivos, como eu, descobriram a luz.Espero que somente a luz permaneça no sonho – o meu sonho – e que os seres da trama descrita, hoje com toda certeza quase extintos pelos avanços,como as ondas do rádio, suplantadas já pela amalucada e esplêndida facilidade (sei lá se é tão fácil) da comunicação pelos moderníssimos celulares, computadores e que tais, continuem povoando corações, como pedaços grandiosos de lembranças saudáveis e cativantes!
Novamente, parabéns! O homem das ciências exatas, com voz estrondosamente bem colocada, ainda se apresenta como o homem da escrita singela e clara. É tudo de bom! Um saudável calmante para povoar sentimentos bons!
“Todos aqueles seres viventes eram também morrentes, como todas as formas de vida que povoam a Terra. ”
De O Brejo, A Guerra e o Rádio ( autor: Prof. Rodolpho Caniatto).
José Elias
O Professor Rodolpho Caniatto é o máximo. Veja palestras dele via You Tube.
Abraços,
Lu
Caro Prof. Rodolpho
Belo texto. O ser humano tem uma capacidade imensurável para se adaptar ao meio ambiente. Infelizmente, isso não ocorre com muitas espécies. Muitas delas desaparecem com a menor intervenção ao seu habitat. Seu texto me lembrou da inauguração da “luz” do Bairro Cuiabá, aqui em Tiradentes-MG. Eu era apenas um menino, mas observador. Meu avô Vicente e minha avó Maria ficaram tão felizes com a chegada da “luz” que ofereceram um grande churrasco para a cidade. Matou-se garrotes, porcos e frangos. A chegada da iluminação propiciou uma festança e um dos marcos da minha infância.
Obrigado por este texto impregnado de memória e sabedoria.
Abraço,
Luiz Cruz
Prof. Rodolpho, gostei imensamente de seu texto. Você me levou, junto consigo, a fazer uma viagem no tempo. É um escritor maravilhoso. Parabéns!
Moacyr
Prof. Rodolpho,
Que viagem você nos proporcionou! Chamou-me a atenção a necessidade do aprender a observar o que nos rodeia, aprender a nos portar no escuro… no escuro da vida, e no escuro da alma, aprendendo a lidar com a morte dos serezinhos da natureza e o curso natural da vida. Olhar o céu estrelado, sentindo-se parte desse universo infinito e sem se sentir ofuscado. Quem se habilita?
Parabéns pelo compartilhamento de uma época tão especial em sua vida e pela excelente narrativa.
Abraços!
Cris Lacerda
Caríssimos Moacyr, Cris, Marcos, Messias, Luiz e Lu.
Foi muito bom saber que vocês gostaram.
Escrevi esse texto como registro de miha memória, faz muitos anos e sem qualquer pretenção literária. É uma experiência realmente vivida e num cenário também real. A conclusão sobre a “cegueira” nos que olham só para a uma “luz” é fruto de muita “quilometragem” pelos caminhos da VIDA.
Obrigado pela generosa “torcida”.
Rodolpho
Prof. Rodolpho
Parabéns pelo texto! Não sei qual é a sua profissão, mas poderia ser escritor tal a facilidade para expor seus pensamentos. O texto é muito bom, nos prende do início ao fim.
Abraços
Marcos Vidinha
Prof. Rodolpho,
Excelente artigo! Ele me reporta a muitos cenários de minha infância, passada numa pequena cidade do interior, e também quando estive sob um céu estrelado no coração da selva amazônica. Achei interessante a sua abordagem da luz e dos animais, ilustrando a cadeia alimentar, muito adequada às situações humanas. Parabéns!
Abraços,
Messias
Caro Prof. Rodolpho
O seu texto deixou-me maravilhada. A sua descrição é tão convincente e convidativa, que leva o leitor, junto consigo, a mudar-se para o brejo, a ajudar na construção do rádio, e a acompanhar toda a vida (e morte) que se desenvolve em volta da luz que iluminava o caminho durante a noite. Ao narrar suas lembranças, você as torna vívidas. Mas mais do que isso, leva-nos a uma profunda reflexão, ao mostrar-nos como o homem muda toda a trajetória da Mãe Natureza, ao nela se inserir, deixando tudo fora dos “trilhos”. Mostra-nos, também, como é o ciclo da vida, já que somos todos morrediços: sapos que comem insentos, cobras que devoram sapos…
Suas palavras chegam a ser comoventes ao descrever o contato dos bichos com a luz. Peço-lhe licença para transpô-las para os homens:
“O que a lâmpada provocou foi um grande alvoroço e a precipitação da morte daqueles que poderiam ter vivido mais na modéstia de sua escuridão. Talvez muitos se tenham beneficiado pela presença da luz. Alguns, mesmo tendo visto alguma luz, não se deixaram ofuscar por ela. Eles puderam ver pelo menos o tipo de tragédia, que se abateu sobre aqueles, que se deslumbraram pela luz e terminaram por não ver mais nada do pouco que viam antes. Alguns não chegaram a ter as asas queimadas, mas já não conseguiam ver mais nada além daquela luz: ficaram “convertidos” para a luz e já não conseguiam ver nem participar da vida na escuridão em que todos estão mergulhados.”.
Obrigada, sensível e competente escritor por nos honrar com o brilhantismo e a profundidade deste texto.
Abraços,
Lu
Prezada Lu
Eu teria preferido manter o título otiginal mas, admito, sua sugestão facilitou o entendimento e o aproveitamento da ideia. Gostei da ideia de que mais pessoas tenham podido aproveitar e partilhar uma experiência de fato vivida. Tudo nesta história é verdadeiro e vivido de fato. Minha vida (88) está cheia de histórias.
Grande abraço