Arquivo da categoria: Historiando Canções

Histórias que remetem à obra musical de vários compositores brasileiros (MPB)

Historiando Chico Buarque – MORENA DOS OLHOS D’ÁGUA

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Morena dos olhos d’água/ Tira os seus olhos do mar/ Vem ver que a vida ainda vale/ O sorrirso que eu tenho/ Pra lhe dar. (Chico Buarque)

Matilde parecia até que se casara com o mar. Mal clareava o dia, lá estava a morena, com seus olhos marejados, em frente à janela que dava vista para aquela imensidão de água a rumorejar. E a menos que não fosse noite de lua viçosa com céu estrelado, só se podia divisar os grandes navios passando ao longe, com suas luzes piscantes. A bela  sereia ali ficava, em sua gasta cadeira de plástico, até o momento em que as brumas da noite cobria tudo, fazendo ouvir apenas o embate das ondas com a fina areia.

O vento marinho entrava assanhado pela janela do quarto de Matilde, e remexia nos seus cabelos da cor da noite escura, acariciava-lhe o rosto ovalado e roçava seu corpo moreno. Ela então sonhava que seu homem havia voltado e lambuzava seu corpo de carícias. Havia noites, entretanto, que o acalentamento transformava-se num fogaréu de frêmitos desejos, como anunciava, no dia seguinte, o algodão branco do lençol molhado. De longe, muitos moços murmuravam: “Morena dos olhos d’água/ Tira os seus olhos do mar/ Vem ver que a vida ainda vale/ O sorrirso que eu tenho/ Pra lhe dar”.

De sua janela, Matilde passou a atrair muitos olhares ameigados, enquanto mirava o mar. Mas ela não via quem passava, perdida em rotas estranhas, aguardando aquele que prometera voltar. E foi ao ver a morena durante dias sem conta, que Juvenato caiu de deslumbramento por ela. A princípio deixou-lhe uma flor e depois outra e mais outra na janela, mas, incapaz de conter a chama de seu ardor, deixou o acanhamento de lado e aproximou-se da deusa de seu amor. Em atitude de adoração, rogou-lhe: “Descansa em meu pobre peito/ Que jamais enfrenta o mar/ Mas que tem abraço estreito, morena/ Com jeito de lhe agradar/ Vem ouvir lindas histórias/ Que por seu amor sonhei/ Vem saber quantas vitórias, morena/ Por mares que só eu sei”.

Matilde, com as meninas dos olhos afogando-se em grossas correntes de águas, contou ao moço que a venerava que “O seu homem foi-se embora/ Prometendo voltar já.”. Mas que já fazia um ano aquela espera que parecia nunca se acabar. E a cada dia ela morria um pouco, perdida na esperança vazia do que não tem jeito de se ajeitar. Juvenato, na tentativa de consolar seu coração, segredou-lhe, comparando as ondas com as coisas do amor: “Mas as ondas não têm hora, morena/ De partir ou de voltar/ Passa a vela e vai-se embora/ Passa o tempo e vai também/ Mas meu canto ainda lhe implora, morena/ Agora, morena, vem”.

A morena compreendeu que o amor era mesmo como as ondas que vão e vêm, como o barco a vela que passa e vai embora, e, como o tempo, podia também nunca mais voltar. E foi depois disso que ela foi se afeiçoando a Juvenato, até que o amor dele ocupou todo o seu coração. Contam alguns que um decênio depois, o antigo homem de Matilde voltou todo alquebrado pelo tempo e pelos bravios mares da vida, pensando ainda morar na vida da mulher por ele abandonada. Ledo engano! Ela estava tomada pelo amor a Juvenal e aos três filhos do casal. Não mais havia lugar para ninguém no coração da “Morena dos olhos d’água”.

Obs.: ouçam Morena dos Olhos d´Água

Nota: obra de Di Cavalcanti

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Historiando Chico Buarque – NOITE DOS MASCARADOS

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Hoje os dois mascarados/ Procuram os seus namorados/ Perguntando assim. (Chico Buarque)

Era noite de carnaval.  O moço mostrava-se ainda mais amarguroso do que antes. Doía nele a lembrança de que sua faceira morena largara-o em troca de um branquelo vindo das estranjas. Mas ficar em casa só faria aumentar o seu acabrunhamento. E foi por isso que decidiu vestir sua fantasia de pierrô e dirigir-se para o clube local, ainda que ali fosse permanecer apenas mirando o aprazimento dos foliões na Noite dos Mascarados.

O desalentado rapaz adentrou-se no salão, levando seu pesado fardo de dissabor debaixo da máscara de pierrô. Enfiou-se num cantinho, como se estivesse envergonhado de carregar tanto entristecimento numa noite daquelas. Quanto mais prazenteiros mostravam-se os foliões, mais tristonho tornava-se seu coração. Ele nem mesmo percebeu quando uma colombina puxou-o pelo braço. Pego de surpresa, deixou-se levar por entre os cordões de serpentina e corpos suados. Curioso, quis logo saber quem seria aquela mascarada, que parecia tão sozinha quanto ele: “Quem é você?/ Quem é você, diga logo/ Que eu quero morrer no seu bloco”.

A colombina, ao ver uma pinga de água escorrendo pela face do pierrô, deduziu que se tratava de dor de amor mal resolvido. Para desenlutá-lo, optou por entrar no jogo. Ela replicou: “Advinhe, se gosta de mim/ Que eu quero saber o seu jogo/ Que eu quero me arder no seu fogo”. O pierrô melancólico respondeu-lhe: “Eu sou seresteiro/ Poeta e cantor/ Eu tenho um pandeiro/ Eu nado em dinheiro/ Eu, modéstia à parte/ Nasci pra sambar/ Meu tempo passou/ Eu sou Pierrot”.

Fascinada com seu poeta e cantor amarguroso que, mesmo tendo nascido para sambar, encontrava-se ensimesmado num cantinho do salão,  a colombina prometeu a si mesma que haveria de tirá-lo daquele amarguramento.  E se explicou: “O meu tempo inteiro/ Só zombo do amor/ Só quero um violão/ Não tenho um tostão/ Fui porta-estandarte/ Não sei mais dançar/ Eu sou tão menina/ Eu sou Colombina”.

Pierrot e Colombina chegaram à conclusão de que era preciso curtir intensamente aquela noite. Não seria necessário que nenhum soubesse nada sobre o outro, pois no dia seguinte a vida voltaria ao normal. Ali, cada um seria apenas aquilo que o outro quisesse, satisfazendo-se mutuamente. Eles, então, cantaram em uníssono: “Deixe a festa acabar/ Deixe o barco correr/ Deixe o dia raiar/ Seja você quem for/ Seja o que Deus quiser”.

Alguns dos foliões, que conheceram o par mais feliz daquela noite,  perguntam-me se houve depois a continuação do caso de amor entre a Colombina e o Pierrot. Eu digo que não sei, pois o poeta não falou sobre isso em sua canção. Ele apenas preocupou-se com o fato de que os dois personagens fossem felizes naquela Noite dos Mascarados. Mesmo que só isso tenha acontecido, valeu a pena. E como valeu!

Obs.: ouçam Noite dos Mascarados

Nota: pintura de Pablo Picasso denominada Pierrot e Colombina

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Historiando Chico Buarque – MEU REFRÃO

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Quem canta comigo/ Canta o meu refrão/ Meu melhor amigo/ É meu violão. (Chico Buarque)

Vida de negro no meu país não é fácil, meu irmão. Ainda mais quando se nasce no morro.

Na favela, eu fui uma criança feliz, livre como um passarinho sem domesticação. Brinquei de bola, soltei pipa e muito balão. Eu até fugi da escola, cheio de curiosidade e simpatia, para conhecer a vida  na cidade, lá embaixo. E foi aí que aprendi uma vergonhosa lição: não era um sujeito, como apregoava D. Adelaide em suas aulas de cidadania, mas tão somente um objeto qualquer, sem préstimo ou sensibilidade. Era tão somente um negro nesta grande nação. Compreendi, a duras penas, que, quando do morro os negros descem, são vistos com olhos de horror e tensão. Os privilegiados ainda enxergam em cada um de nós um marginal, um tipinho à toa, um ladrão. Eu “Já chorei sentido/ De desilusão/ Hoje estou crescido/ Já não choro não”.

“Eu nasci sem sorte/ Moro num barraco/ Mas meu santo é forte”, murmurava para mim mesmo, tentando elevar a autoestima. Chegado que era a um violão, vi que no samba, velho companheiro de quem nasce no morro, estava a minha salvação. Não iria dar o braço a torcer, acreditar no que falam muitos brancos, que todo negro é treiteiro e vadio, que não tem respeito ou qualquer tipo de brio. Iria moldar meu caminho, e fazer valer meu próprio refrão. Jurei que meu melhor amigo seria meu violão.

E foi assim que abracei o samba, sou compositor de gabarito e sambista de verdade, respeitado no morro e na cidade. Não me fiz refém do racismo, e contra ele canto meu estribilho em alto e bom tom: “Quem canta comigo/ Canta o meu refrão/ Meu melhor amigo/ É meu violão“. E para quem não sabe, “O samba é o meu fraco/ No meu samba eu digo/ O que é de coração”.

Obs.:  ouça a música: MEU REFRÃO

Nota: pintura de Portinari, Samba

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Historiando Chico Buarque – COM AÇÚCAR, COM AFETO

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Quando a noite enfim lhe cansa/ Você vem feito criança/ Pra chorar o meu perdão/ Qual o quê/ Diz pra eu não ficar sentida/ Diz que vai mudar de vida/ Pra agradar meu coração. (Chico Buarque)

Não era por falta de aviso que eu não largava de vez o meu José Bento, que de bento não tinha coisíssima alguma. A menos que seu benzimento tivesse sido feito numa mesa de boteco, em meio a uma roda de samba, borrifado pela filha de senhor de engenho e rodeado por rabos de saia, aos tragos com Jerebita, Jurubita, Januária, Girgolina, Tafiá e Maria-branca. Eu só sei é que amava aquele traste mais do que a minha própria honra, embora alguns me dissessem que se tratava de acovardamento, pois mulher nenhuma merecia passar por tanto vexame e vergonheira. Ainda mais em se tratando de uma companheira pelejadora como eu. Mas não era nada disso, minha gente, era adoração, idolatria das grandes pelo meu homem.

Zé nem precisava pensar. Eu tentava adivinhar suas mais ocultas vontades. Dividia o dia entre montes de roupas para passar e a vontade de agradá-lo, matutando um jeito de firmá-lo dentro de nosso lar. Nunca faltava seu doce de mamão verde com coco, ainda que eu não tivesse goma para botar na água de passar roupa. Sua camisa branca e o terno escuro estavam sempre luzidios, dependurados num cabide, prontinhos para ele procurar emprego. O que a querença não faz com o coração da gente. Sei que a brilhantina no cabelo, a colônia de alfazema jogada no corpo e o sapato engraxado almejavam fins mais fagueiros.

Grande parte do dia Zé passava na praia e à noite saía de casa, dizendo que ia buscar trabalho, pois não queria me ver morrer no calor do ferro em brasa. Que nada! Eu ficava sabendo pelos vizinhos que na praia ele fincava os olhos nos corpos suados das mulheres ao sol, como se não tivesse uma morena num suadouro infernal dentro de casa. E à noite parava de bar em bar, sempre comemorando alguma invencionice ou rememorando um samba antigo.

Quando não mais aguentava esperar por Zé, eu dormia em meio a montanhas de roupas lavadas, dopada pelo cansaço do dia. E sonhava que ele me tomava nos seus braços, e dançava samba comigo pelos botecos do bairro, com aquele sorriso tão bonito, que somente ele sabia ter. Minha blusa de renda e saia de babados esvoaçavam, enquanto a gente rodopiava de um canto para outro, com todos os olhares voltados para nós. Mas era com o barulho do pandeiro que eu acordava, com Zé batendo na porta, extenuado pela noite sem dormir.  “E ao lhe ver assim cansado/ Maltrapilho e maltratado/ Ainda quis me aborrecer/ Qual o quê/ Logo vou esquentar seu prato/ Dou um beijo em seu retrato/ E abro os meus braços pra você”.

Certa noite, no surgir da madrugada, bateram na minha porta. Não era o Zé. Eu conhecia o barulho do seu toque. Vieram me dizer que ele estava internado. Tivera um derrame e tombara sobre a mesa do boteco sobre o copo da caninha. Ele voltou do hospital. E, como eu por tanto tempo desejara, não mais saía, só parando em casa. Agora Zé não tem mais amigo, não canta samba e nem consegue segurar um copo nas mãos inertes. Ai, como eu agora queria vê-lo sair com seu terno mais bonito, dizendo que não se atrasará, pra eu não ficar sentida, e que vai mudar de vida “Pra agradar meu coração”.

Obs.:
Ouça COM AÇÚCAR E COM AFETO

Nota: Mulher Passadeira Passando Roupas, obra de Edgar Degas

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Historiando Chico Buarque – PEDRO PEDREIRO

Autoria de Lu Dias Carvalho

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E a mulher de Pedro/ Está esperando um filho/ Para esperar também. (Chico Buarque)

Pedro veio do Norte para o subúrbio da cidade grande a fim de trabalhar na construção civil. Trouxe mulher, dois filhos e muita esperança.

O moço levanta-se ao raiar da aurora, quando o orvalho da madrugada inda chora. Com seu grupo dirige-se para a fria e tosca estação ferroviária, onde espera o velho trem, que os conduzirá até a obra. Seu corpo vai balançando junto ao de seus irmãos de sina, todos em busca de melhoria de vida, numa luta vã e inglória.

Os companheiros nem se falam, embora presentes no mesmo vagão. Com os olhos pesados pelo sono deficiente, cada um segue recolhido no seu pensar. Em bolsas, já desgastadas pela labuta, cada qual leva sua tralha. Nas marmitas de alumínio amassadas vai a matula de cada dia. Ao descer na estação, o grupo caminha em busca do lotação, que chocalha e dá pinotes como um burro bravo. Depois de uma hora de solavancos, como sacos de cimento ou areia, na obra são despejados.

“Mãos na massa, pois tempo é dinheiro!” – grita o mestre de obras. Passadas cinco horas de trabalho pesado, dão pausa para o rango de pouca sustança, dieta insossa para um trabalhador braçal. Mal engolem o grude e espicham as pernas, deitados no chão duro de cimento que lhes machuca as costelas, vem o irritante sinal. É preciso dar continuidade à dura faina, sinta-se bem ou mal, chova ou faça sol.

Na construção, Pedro obra de tudo: faz proteção, levanta andaime, amassa bolo, vara prego, faz paginação, amolece massa, levanta paredes, espalha reboco, talha mármore, trabalha granito, deixa vãos. Suas mãos são calejadas pela dureza da labutação. Tosse uma tosse vinda do pulmão inflamado pelo pó do cimento. Os músculos estão retalhados pelo peso dos materiais usados e todo o corpo moído pela argamassa.

Na volta para casa, Pedro pensa, tentando dar sentido à existência:
“Eu sou um oleiro da vida, artista filho da terra, que dá vida ao que talha, que dá forma ao que toca, que ergue palácios e choças, maternidades e cemitérios. Tenho mãos grossas e calejadas e também grandes ideias. Com elas construo parte do mundo: casas, muros, pontes, escolas, estradas, hospitais, cadeias, shoppings e prédios, que minguadinhos brotam do chão, e depois, quase tocam os céus, desafiando a gravitação.

Sou um democrata nato. Ergo a morada dos bons ou maus, arrogantes ou humildes, letrados ou analfabetos, crentes ou ateus, sem nenhuma distinção, ainda que em casa, minha família viva num barraco bem coladinho ao chão. Sou eterno. Viverei nas coisas que construo, pois ainda que nenhuma geração venha a conhecer meu nome, em tudo que faça minha digital ficará gravada. Os diplomados ditam-me as regras, mas sou eu quem põe a mão na massa .

Sou filho amado da mãe Terra. Acaricio-a com minhas mãos rudes, suadas e cheias de calo. Gosto de tocá-la e senti-la junto a mim, pois um dia, eu me juntarei a ela, que, com certeza, irá se lembrar de seu caboclo humilde, que dela nunca sentiu vergonha. E ela me dará de presente um naco de seu torrão, pra que nele meus ossos adormeçam eternamente, bem coladinhos ao seu coração.”

Pedro não mais espera pelo aumento ou pela sorte. Até mesmo desistiu de voltar para o Norte, ele “Espera alguma coisa mais linda que o mundo/ Maior do que o mar” – espera o filho “Que já vem, que já vem, que já vem…”.

Obs.:  ouçam a música – PEDRO PEDREIRO

Nota: obra de Lasar Segall, denominada Autorretrato (1933)

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Historiando Chico Buarque – JUCA

Autoria de Lu Dias Carvalho

JUCA

Juca foi atuado em flagrante/ Como meliante/ Pois sambava bem diante/ Da janela de Maria. (Chico Buarque)

Juca era tão ingênuo quanto seu coração festeiro. Era o xodó das garotas, principalmente quando dedilhava seu violão numa roda de samba, acompanhado por sua voz cadenciada. Muitas daquelas mulheres desejavam que seus dedos ágeis dedilhassem suas curvas e montes, assim como fazia com as cordas de seu instrumento. E muitas outras imaginavam sua voz veludínea dizendo-lhes palavras cariciosas ao pé do ouvido. Mas Juca só parecia amar seu violão. Isso até conhecer Maria, numa tarde calorenta, na praia do Leblon.

O mulato quedou-se de amor pela branquela de cabelos de fogo e de pele salpicada por pintas miúdas. Passou a frequentar a mesma praia só para vê-la deslizar-se pela areia com seu ar distante e indolente, como se tudo em derredor fosse apenas dela. E de amor foi caindo pela alva figura, a ponto abandonar suas diletas rodas de samba. Ninguém duvidava de que Juca estivesse mudado. Talvez maldisposto, achacoso ou mazelado. Podia até mesmo ser quebranto ou mau-olhado. O sorriso fugira-lhe dos espessos lábios e os olhos mostravam-se fugidios e melancólicos, bem distantes do morro com seus tempos e contratempos.

Juca seguiu Maria e descobriu que a moça era de família rica, e morava num belo sobrado branco de janelas azuladas. Durante alguns dias por ali passou, até descobrir qual janela dava para seu quarto. E foi depois disso que, munido de seu violão, numa noite de lua cheia, pôs-se a cantar, como um enamorado pássaro-preto, os sambas mais bonitos que conhecia. E cantou, cantou… Até o dia raiar. Mas Maria não apareceu, nem mesmo quando a noite já se fazia dia. E Juca, entristecido, disse para si mesmo que a culpa fora sua, pois cantara muito baixo, preocupado com os acordes de seu violão.

Pobre Juca! O moço não imaginava que o amor pudesse ter cor e posição social. Achava que fosse tão democrático quanto as rodas de samba no morro, onde bastava uma caixa de fósforo para ser aceito no círculo em que todos podiam beber do mesmo copo. Vê-se que pouco conhecia do mundo dos endinheirados que se esparramava lá embaixo, com seus altos portões, guarda-costas e empregados como cães policiais a enxotar pobres e negros que ousassem botar os pés no pedaço.

O mulato de voz aveludada voltou no dia seguinte, dessa vez acompanhado por dois amigos violonistas. E pôs-se a cantar e sambar debaixo da janela de sua musa, até que dois policiais paralisaram seus passos e calaram sua voz, alegando perturbação da ordem pública, disseram ainda que tudo ali tinha dono e não era passarela para malandro. Encaixotaram-no, juntamente com os companheiros, num grotesco camburão, e conduziram-no para o xilindró. O fato é que “Juca foi atuado em flagrante/ Como meliante/ Pois sambava bem diante/ Da janela de Maria/ Bem no meio da alegria/ A noite virou dia/ O seu luar de prata/ Virou chuva fria/ A sua serenata/ Não acordou Maria” e ainda acabou na prisão. Que danação!

Na delegacia, “Juca ficou desapontado”, e “Declarou ao delegado/ Não saber se amor é crime/ Ou se samba é pecado”.  E o apaixonado “Em legítima defesa/ Batucou assim na mesa”. Ainda assim, “O delegado é bamba/ Na delegacia/ Mas nunca fez samba/ Nunca viu Maria”. E ainda prometeu jogar Juca no xadrez se perturbasse a ordem pública outra vez.

E Maria? Casou-se com um “dotô”, teve filhos e envelheceu. Mas eternizou-se. Virou samba na voz melodiosa de Juca que nunca mais amou ninguém.

Obs.: ouça a música: JUCA

Nota: obra de Di Cavalcanti, denominada Roda de Samba (1929)

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