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Autoria de Tatiana Dias*
Eu fui demitida no dia em que voltei de licença-maternidade. Havia passado semanas me preparando, deixei o freezer cheio de leite do peito, me despedi chorosa de minha bebê de cinco meses e fui trabalhar. Cheguei, liguei o computador, mas mal tive tempo de lembrar de minhas senhas – fui chamada numa sala e, então, demitida. Ainda ouvi, de duas hierarquias superiores diferentes que seria bom, pois teria mais tempo para ficar com a minha filha.
Fiquei atônita, sequer soube como reagir. Agradeci e me despedi. Foi a primeira e única vez em que fui demitida. No meu primeiro dia de trabalho após a maternidade, passei a tarde na fila do exame demissional. Felizmente, já estava com outra oportunidade engatilhada, então não precisei interromper a minha carreira como tantas outras mulheres que param nesse ponto. Mas contei essa história para dizer: é precisamente aí que está o problema.
Nesta semana, Lula declarou que apresentará uma lei de igualdade salarial entre homens e mulheres, uma promessa feita no acordo com a ex-presidenciável Simone Tebet. “Toda hora que você vai procurar essa lei, parece que existe, mas tem tantas nuances que tudo é feito para a mulher não ter o direito. Ou seja, então é preciso fazer uma lei que diga que a mulher deve ganhar o mesmo salário do homem se exercer a mesma função. E pronto, não tem vírgula”, declarou Lula. A lei deve ser apresentada simbolicamente na próxima quinta-feira, 8 de março – Dia Internacional da Mulher.
Quem discorda? Eu não ouso. Acontece que essa regulação já existe – a própria CLT veda discriminação salarial por gênero desde 1943. “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade”, diz o artigo 461 da lei.
O problema não é uma legislação ou mesmo fiscalização. O problema é o abismo salarial que se abre quando as mulheres interrompem suas carreiras por causa da maternidade, deixando de crescer profissionalmente ou mesmo de trabalhar. E o mesmo não acontece com os homens.
Vários estudos diferentes já mostraram que a diferença salarial não acontece necessariamente por causa do gênero – mas, sim, pela maternidade. São as mulheres com filhos as maiores penalizadas. E isso é especialmente patente entre as que têm escolaridade mais baixa, o que aumenta a desigualdade e todos os problemas que conhecemos muito bem. No Brasil, 32 milhões de famílias são chefiadas por mulheres. Não é exagero dizer que todas, ou quase todas, sofrem a chamada “penalidade materna”.
Mulheres não têm com quem deixar os filhos para irem trabalhar. As creches não têm horários que permitam conciliar com as famílias – isso quando há creches, né? Estima-se que mais de 17 milhões de crianças de 0 a 3 anos no Brasil estejam fora das creches. A sociedade patriarcal ainda relega às mulheres a prioridade sobre o cuidado com os filhos em um modelo machista que é respaldado por políticas públicas. Temos quatro meses de licença (o que é muito pouco) e os pais têm ridículos sete dias – vinte, nos casos mais generosos. Quem, na volta desse período de licença, tem mais chance de não voltar a trabalhar? Quem terá mais dificuldades com o retorno? Quem tem mais chances de não ser recomendado por colegas? Quem é considerado o cuidador natural do bebê por todo o entorno?
Um dos estudos sobre o peso da maternidade, feito por um economista da Universidade de Princeton, nos EUA, mostra que os salários das mulheres têm uma queda significativa após o primeiro filho. O gráfico é chocante. Até a maternidade, o avanço na carreira de homens e mulheres é semelhante; depois do bebê, o das mulheres cai, enquanto o dos homens segue subindo sem incômodo. E olha que os dados utilizados no estudo se referem à Dinamarca, um dos países com uma rede de proteção social infinitamente melhor do que a do Brasil.
Por aqui, outro estudo, publicado em 2022 – desta vez, de economistas da Universidade Federal da Paraíba e do Ceará – mostrou que mães com crianças menores de 6 anos ou com mais de um filho possuem mais desvantagem salarial em comparação com as mulheres sem filhos, especialmente entre quem tem menor nível de escolaridade. Por isso, os pesquisadores recomendam políticas de apoio às mães para continuarem seus estudos e trabalho – creches – e amparo para quem está no setor informal.
Eles também sugerem que, apesar das leis trabalhistas que garantem proteção, “há o posicionamento da sociedade de que a criação dos filhos é de responsabilidade exclusiva da mulher, o que contribui para que a discriminação nas relações de trabalho persista”, escreveram. “Portanto, pretende-se ampliar o debate sobre a problemática da discriminação das mulheres com filhos no mercado de trabalho, além de defender o fato da mulher poder conciliar o papel de mãe com o direito de trabalhar e/ou estudar”.
É muito difícil detalhar em palavras o peso que é ser uma profissional, avançar na carreira, e conseguir conciliar com a maternidade – mesmo cercada de privilégios. Por isso, achei muito bonita a iniciativa do novo governo, gera belas manchetes, mas arrisco dizer que ela mudará muito pouco a realidade.
Que tal começar em políticas que incentivem uma licença paternidade maior, ou mesmo uma familiar? O governo Bolsonaro havia cortado 97% das verbas das creches. O quanto disso será restabelecido pelo novo governo? Que medidas podem ser feitas para que as empresas garantam horários flexíveis, home office e salas de amamentação para as mulheres que acabaram de ter filhos? Mas, mais profundamente: o que podemos fazer, em termos de políticas públicas, sobre a discriminação das mães em ambientes de trabalho e a discussão no papel das mulheres como cuidadoras principais?
Ainda não sabemos se a lei de igualdade salarial proposta por Lula vai se aprofundar em alguma dessas questões, já que o governo não divulgou o texto. Mas “igualdade salarial”, em tese, já temos. São as respostas a questões mais profundas, que garantem mais igualdade nos cuidados com as crianças e a criação de uma rede de apoio pública e acessível, além de empresas verdadeiramente comprometidas, que podem de fato equiparar o salário entre homens e mulheres.
Porque quando uma mulher volta a trabalhar depois da licença maternidade – e isso já é um privilégio porque grande parte de nós sequer temos licença, ou a possibilidade de deixar os filhos com alguém, ou mesmo emprego –, ela está em um momento sensível e pode até querer ficar mais tempo com o seu bebê. Mas também quer – e precisa – continuar trabalhando. E cabe ao estado garantir a proteção social necessária para que isso aconteça.
*Editora Sênior do Intercept Brasil
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