Arquivo da categoria: Crônicas

Abrangem os mais diversos assuntos.

MAROLO – FRUTA DA SEMANA SANTA

Autoria de Luiz Cruz

     

 O quanto em toda vereda em que se baixava, a gente saudava o buritizal e se bebia estável. Assim que a matalotagem desmereceu em acabar, mesmo fome não curtimos, por um bem: se caçou boi. A mais, ainda tinha araticum maduro no cerrado. (João Guimarães Rosa)

A Serra de São José tem muitos atrativos. Além da paisagem, das cachoeiras e da rica biodiversidade, encontram-se alguns frutos típicos e um deles é o marolo (Annona crassiflora). É uma fruta da família Annonaceae, a mesma da fruta-do-conde. É conhecida também como araticum, bruto e cabeça-de-nego. Ela é composta por três ecossistemas: Mata Atlântica, Campo Rupestre e Cerrado.

O Cerrado sofreu forte impacto devido às atividades agrícolas, ficando poucas manchas de matas junto ao sopé da serra. Embora reduzidas, essas áreas tornaram-se da maior importância para a proteção da biodiversidade. Uma das espécies encontradas nas matas do Cerrado da serra é o marolo, uma árvore de porte médio, variando de 4 a 8 metros de altura, com folhas grossas, troncos retorcidos e bastante resistentes aos incêndios, que ocorrem no ecossistema. Ela consegue desenvolver em áreas de baixa umidade e tem crescimento muito lento. Suas flores são verdes-amarelado, solitárias e carnosas, ocorrendo entre os meses de outubro e novembro. Os frutos em bagas são encontrados entre fevereiro e abril. Podem pesar até 2 kg e, quando maduros, caem sobre o solo. Têm sabor adocicado e perfume bem característico. Possuem elevados teores de açúcares, proteínas, cálcio, ferro, fósforo, vitaminas C, A, B1, B2 e fibras. As sementes são relativamente grandes, espessas e rígidas, para germinar precisam de longo período de dormência. Seus principais dispersores são os animais que se alimentam dos frutos. Infelizmente, devido ao desmatamento, a espécie está cada vez mais reduzida às pequenas manchas de matas.

A variedade dessa espécie é grande, cerca de 25, uma delas é o Marolo de Moita (Annona dioica), que foi descrita pelo viajante francês Auguste de Saint-Hilaire. A fruta tem amplo e tradicional uso na culinária mineira. Pode ser consumida in natura, com sua polpa faz-se licores, biscoitos, bolachas, bolos, sorvetes, picolés, geleias, doces, batidas, e ainda se prepara um creme para rechear os “ovos de páscoa”, pois sua combinação com o chocolate é perfeita! Seu sabor está intrinsicamente ligado ao período da Semana Santa, devido à grande oferta da fruta nesse período do ano.

Quem tiver interesse em saborear marolo não precisa sair procurando pelas árvores atrás da Serra de São José, basta chegar até a Praça São Sebastião, no centro de Santa Cruz de Minas, e encontrar com o José Norberto dos Passos. Ele, já idoso, aos seus 81 anos de idade, mas cheio de energia, sobe a serra, colhe os frutos e os vende em seu carrinho, instalado na praça. Norberto conhece todos os pés de marolo da serra e ajuda na preservação, divulgando essa espécie tão significativa para a culinária mineira e para a biodiversidade.

Nota: Fotografias do autor mostrando José Norberto dos Passos e a fruta marolo

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LAMAÇAL EM TIRADENTES – TRAGÉDIA ANUNCIADA

Autoria de Luiz Cruz

No dia 19 de março ocorreu uma forte tempestade em Tiradentes, e parte da cidade foi atingida por um lamaçal carreado das áreas de empreendimentos imobiliários. O povo foi castigado, algumas famílias perderam tudo, em decorrência da ganância dos especuladores e da falta de seriedade do Poder Público em fazer cumprir a legislação por todos os cidadãos. A lama de Tiradentes tem nome duplo: Irresponsabilidade e Impunidade.

São José, a atual Tiradentes, foi a primeira ocupação da região do Rio das Mortes. Seu território sofreu impacto devido à extração aurífera. A vegetação foi removida, resultando numa paisagem devastada, conforme registro do viajante Saint-Hilaire: “As colinas de São José, cavadas e reviradas em todos os sentidos, demonstram quais eram as ocupações dos primeiros habitantes dessa vila. Seus arredores fornecem muito ouro e é de crer-se que este lugar foi de grande importância.”. O viajante tinha razão, de São José saiu muito ouro. Dessa atividade, ficaram marcas em diversas áreas, que poderiam ser sítios arqueológicos, pois propiciariam a compreensão das técnicas minerárias. A mineração deixou o solo exposto e frágil.

Redescoberta pelo turismo na década de 1980, com fluxo de visitantes de São Paulo e do Rio de Janeiro, Tiradentes veio a ser uma das principais atrações turísticas do Brasil, devido à preservação de seu patrimônio cultural e ambiental. O aumento do turismo, o fortalecimento dos serviços e a divulgação fizeram com que a cidade tornasse alvo da especulação imobiliária. Porém, desde a década de 1980, o uso do solo e seu parcelamento já eram motivos de preocupação – foi elaborado o Plano Diretor de Tiradentes, mas não implantado. Depois veio o zoneamento proposto pelo IPHAN, mas contemplando o entorno imediato do centro histórico. Como era de se esperar, Tiradentes entrou no século XXI como uma das cidades brasileiras mais desejadas e, consequentemente, uma das mais ameaçadas de descaracterização, principalmente pela especulação imobiliária e grandes investimentos hoteleiros.

O Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes, através do apoio financeiro do BNDES, foi o proponente do Plano Diretor do município. Os trabalhos foram coordenados pela Fundação João Pinheiro – por equipe madura e com vasta experiência em Planejamento Urbano.  A partir de fevereiro de 2014, foram realizadas oficinas nos bairros, propiciando a todos o acompanhamento dos trabalhos, assegurando ampla participação. Elas foram um sucesso, porém com raras participações dos vereadores, os quais deveriam acompanhar o passo a passo da construção do Plano Diretor, pois esse passaria por aprovação da Câmara Municipal.

Paralelamente aos trabalhos do Plano Diretor, vários projetos de loteamentos emergentes chegaram à Câmara para análise, aprovação ou não. Infelizmente, mesmo com o Plano Diretor em andamento, alguns foram aprovados, contrastando com os anseios do povo, que expressou nas oficinas a necessidade de ordenamento territorial. Com o Plano Diretor devidamente aprovado pela Câmara, os tratores continuaram fazendo remanejamentos de terras em áreas de risco, apesar de a cidade já possuir mais de três mil lotes disponíveis.

Os especuladores têm se esforçado para destruir nossa querida Tiradentes, contrastando com o Poder Público desestruturado. Há leis e instrumentos suficientes. No papel, Tiradentes deveria ser uma das localidades mais protegidas do Brasil. Seu Conjunto Arquitetônico e Paisagístico é tombado pelo IPHAN, desde 1938. A Serra de São José é uma APA – Área de Proteção Ambiental desde 1990 e RVS – Refúgio da Vida Silvestre desde 2004, sob gestão do IEF – Instituto Estadual de Florestas. Além do Código Florestal Brasileiro, Lei Nº 12.651, de 2012, que trata do uso do solo.  É elementar uma Secretaria Municipal de Obras, com corpo técnico, competente e comprometido. A legislação deve ser aplicada!  Para salvar Tiradentes ninguém precisa “inventar a roda”, basta cumprir a lei.

Nota: fotografias do autor.

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CRIMES SEXUAIS E CONSEQUÊNCIAS

Autoria de Lu Dias Carvalho

Os crimes sexuais contra a mulher avolumam-se em todo o mundo, principalmente nos países em que a condenação para esses é tacanha, e onde o machismo é estimulado, sendo visto como uma característica importante da sociedade, que é muitas vezes regida por certos princípios religiosos. É também muito comum ver estampada na mídia a verborragia de certos políticos, fazendo uma apologia ao estupro contra as mulheres, legando a elas a “culpa” por terem sido agredidas sexualmente. E imaginar que tais pessoas foram eleitas para proteger também essas mesmas mulheres! É impossível estimar o número exato de tal violação, pois as vítimas, envergonhadas, preferem, na maioria das vezes, silenciar-se, com medo de ficarem estigmatizadas pela incompreensão e rudeza da sociedade.

No caso do estupro (crime que consiste em constranger o indivíduo, de qualquer idade ou condição, a conjunção carnal, por meio de violência ou grave ameaça) é a personalidade da vítima que irá mensurar as consequências psicológicas que virá a ter. Quanto mais equilibrada for, melhor lidará com a violência perpetrada contra ela. Se se tratar de uma pessoa fragilizada, poderá se tornar desconfiada, temerosa de novos realcionamentos, com reijeição ao sexo, ou, ao contrário, poderá se transformar numa pessoa extremamente promíscua. Também não se pode descartar a depressão e a tentativa de suicídio. Se a violação traz uma gravidez, as coisas complicam-se mais sérias, trazendo dilemas diversos.

No rol dos crimes sexuais está também o incesto (relacionamento sexual ilícito entre parentes consanguíneos, afins ou adotivos). Embora cause indignação geral, está mais presente na sociedade do que se possa imaginar. Além de colocar em cheque a vida emocional da vítima, muitas vezes perdurando por vários anos, ainda ameaça a unidade estrutural da família. A miséria também pode estar ligada a esse tipo de crime, quando pais e filhos dormem num mesmo quarto, sem nenhum tipo de privacidade. Pesquisas mostram que, quando sujeitas ao incesto, as pequenas vítimas tendem a tornarem-se adultos promíscuos ou frígidos, ou ainda podem ter sérias dificuldades de relacionamento.

A pedofilia (crime que se caracteriza por desejo recorrente de práticas sexuais e de fantasias sexuais com crianças pré-púberes e adolescentes) é, na maioria das vezes, abafada para proteger o adulto portador do distúrbio psicossexual. O ideal é que se tomem as medidas necessárias, evitando as reações dramáticas, de modo a proteger a criança ao máximo possível, além de dar-lhe suporte emocional. Com o avanço da tecnologia, a pedofilia vem ganhando campo em todo o mundo, apesar de leis severas e das reações de horror que provocam em todo o mundo. A internet tem sido um campo propício para esse tipo de crime, merecendo dos pais a máxima atenção possível, em relação a seus filhos menores, monitorando o que veem.

Muito se tem falado sobre parafilia, nome que recebe cada um de um grupo de distúrbios psicossexuais em que a excitação sexual é alcançada fora dos padrões sociais aceitos como normais, em que se incluem, por vezes, fantasias com objeto humano, autossofrimento ou auto-humilhação, ou sofrimento ou humilhação, consentidos ou não, de parceiro, etc. (Def. do Aurélio). São parafilias, apenas para citar algumas, o interesse erótico principal por:

  • Asfixia érotica (asfixia de si próprio ou de outros; pode levar à morte).
  • Biastofilia (estupro de uma pessoa inconsciente, geralmente um estranho).
  • Coprofilia (ingestão de fezes durante o ato sexual).
  • Exibicionismo (exibir o órgão sexual em público sem permissão de quem vê).
  • Fetichismo (interesse particular em objetos sem vida própria).
  • Masoquismo (prazer em ser espancado, agredido ou humilhado verbalmente pelo parceiro)
  • Sadismo sexual (sofrimento físico ou psicológico imposto ao parceiro).
  • Urofilia (urinar ou receber urina do parceiro, com sua ingestão ou não).
  • Voyeurismo (assistir outras peladas ou praticando o coito, com ou sem permissão dessas).

Nota: imagem copiada de Unisinos

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NÃO OLHE PARA UM ÚNICO FOCO DE LUZ!

Autoria do Prof. Rodolpho Caniato

O lugar em que vivi as experiências da luz acesa no brejo, relatadas no texto O BREJO, A GUERRA E O RÁDIO, ficava no sítio de meu avô paterno, no bairro dos Fernandes, em Corrupira (Jundiaí/SP), lugar em que vivi dos nove aos quatorze anos (1938-1943).

Por mera casualidade, esse sítio foi, muitos anos mais tarde, adquirido por um grande filósofo, educador, escritor e teólogo catarinense: Huberto Rhoden (1893 – 1981). Fui conhecê-lo. Era realmente uma figura humana que causava forte impressão. Além de sua cultura vastíssima e do invejável domínio da palavra, sua imagem era imponente: seu porte ereto e grande, sua basta cabeleira já estava toda branca. Seus olhos azuis pareciam estar sempre focados no infinito. Seu tom de voz era sempre profético. Tudo fazia desse homem excepcional um verdadeiro luzeiro. Aprendi muito com esse homem de grande cultura e sabedoria. A mim fascinava especialmente seu domínio sobre a etimologia: o conhecimento sobre a origem das palavras em suas raízes mais fundas – a Filosofia Universal. Seu currículo, seus muitos livros, sua fala calma e segura sem qualquer tropeço, e sua convivência com Albert Einstein, em Princeton (USA), faziam dele um grande mestre, mais do que isso: um verdadeiro “guru”.

Para muitos, Huberto Rhoden tornou-se uma grande lâmpada no brejo de suas vidas. Para outros, esse homem se tornou uma “luz” tão forte que lhes ofuscou e tolheu a visão das outras coisas de suas vidas. Até mesmo as limitações e as fraquezas, próprias de qualquer ser humano, tornavam-se nele, virtudes excelsas para muitos dos deslumbrados. Não por culpa dele, mas por culpa daqueles que se deixaram ofuscar, pelo fato de só olharem para aquela “luz”. Muitos desses passaram a “orbitar” cativos, tão próximos a ele, que já não conseguiam ver outra coisa a não ser o mestre e só repetiam suas palavras. Vários outros casos conheci, como o do grande Pietro Ubaldi, autor de “A Grande Síntese”. Vi coisas semelhantes. Homens que, pelo brilho e fascínio do que diziam, podiam ser considerados grandes “luzeiros”. Menos por culpa deles e mais daqueles que os fitavam tão fixa e unicamente, que muitos desses “queimaram as asas” e passaram a enxergar menos do que viam no apagado de suas vidas mais obscuras.

Se por um lado devemos buscar as “luzes” de quem sabe mais, para jogar alguma claridade sobre nossos caminhos, não nos devemos deixar ofuscar ao ponto de só olharmos para a “luz”. Não podemos perder de vista nosso querido “brejo”. Nem as mais brilhantes lâmpadas valem nossa renúncia de conduzirmos nossas próprias vidas, mesmo que modestas ou sem grande brilho. Todos os fanatismos, que nos fazem olhar para uma única “luz”, acabam por nos cegar para as limitações e possibilidades da vida. A escuridão com que temos que conviver é, às vezes, desconfortável e cheia de riscos. No entanto, a certeza de uma única “luz” para onde devemos olhar parece ridícula, diante de tantos e diferentes pontos de luz. O olhar fixo para uma única luz nos faz perder a possibilidade de aprender e desfrutar coisas que vemos na penumbra e até na escuridão do Mundo em que vivemos. É desde a mais completa escuridão que melhor podemos ver o esplendor do céu cheio de uma infinidade de estrelas, mesmo estando no “brejo” de nossas modestas e insignificantes vidas.

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OS PERIGOS DE NOSSO SÉCULO

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Os século XXI deu início a sua permanência no tempo com conquistas científicas e tecnológicas, que trouxeram grandes benefícios à espécie humana. No entanto, a humanidade paga um ônus por isso, pois nada vem de graça. Ela se tornou muito perigosa para si mesma e para os outros seres, seus companheiros de planeta. Apesar de sua modernidade e de cada vez mais se parecer com deuses, nossa espécie vem negligenciando tanto as suas próprias necessidades, como as dos outros seres com quem partilha a vida terrena. Tem sido incapaz de trabalhar com suas forças e fraquezas, questionando-se sobre o mau uso que faz de sua presença poderosa neste planeta. Não tem se preocupado com a sua capacidade de destruição e o poder do ódio que carrega direcionado a si, a seus semelhantes e à Terra.

As religiões continuam com a velha cantilena sobre o pecado, que nunca leva a lugar algum. Aquilo, que elas chamam de “pecado”, nada é mais do que um misto de ressentimento, avareza, inveja, indiferença, arrogância e maldade, que campeia sem freio pelo mundo. Portanto, a evolução espiritual é o único caminho a ser buscado, de modo que o homem possa preservar o seu futuro e o do planeta, pois ambos são indissociáveis. Esta evolução não compreende apenas o avanço espiritual, mas também a percepção das forças maléficas tão comuns aos dias de hoje, onde se aninham os mais diferentes tipos de preconceitos, que devem ser combatidos em benefício da vida.

Foi-se o tempo em que as ameaças mais nefastas, relativas à destruição da vida, estavam ligadas à natureza externa, com suas forças indomáveis. Hoje, as principais desgraças encontram-se revigoradas no coração humano, grande hospedeiro dos vermes da hostilidade, do descaso, do egoísmo, do orgulho e da ignorância deliberada. Na verdade, o homem é o mal maior da Terra. Ainda há saída, mas que seja urgente a tomada de atitude. Faz-se necessário que o ser humano solidifique a sua capacidade de ação para fazer o bem. Só assim poderá reconhecer a capacidade, que traz em si, para gerar o mal.

Os chamados sete pecados capitais (soberba, ira, inveja, avareza, gula, luxúria e acídia), sempre estiveram ligados à existência humana, mas nunca estiveram tão presentes como nos dias de hoje. Ser “humano” induz ao entendimento de que as ações sejam humanitárias. Assim elas deveriam ser, segundo os critérios racionais. Mas não o são, já que o homem tem abdicado de sua humanidade ao recusar suas responsabilidades para com a vida no planeta. Riqueza e poder têm sido sua principal meta de vida, como se na Terra fosse permanecer por mais de 500 anos. Tolo e cego que é.

Tenho restrição à palavra “pecado” que no século XXI vem perdendo, cada vez mais, a sua força. Primeiro porque não é levada a sério por quem não pratica uma crença qualquer, e até mesmo por quem diz praticar. Segundo porque aparece ligada, apenas, às coisas do profano. Terceiro porque não abrange a humanidade como um todo, em suas preocupações. O sentido de “pecado” deveria evoluir com as mudanças ocorridas no mundo. É preciso uma abordagem totalmente nova, cheia de significados condizentes com a época atual. A palavra “omissão” está mais afeita aos nossos tempos, pois abrange um sentido amplo, atingindo a humanidade e as várias formas de vida no planeta como um todo.

 De nada adianta a busca pela salvação individual sem que se pense na vida como um conjunto. Sem que haja uma firme conscientização de que a nossa Terra está morrendo a passos largos, esfacelada pelas transgressões humanas.  É preciso modernizar o sentido de pecado, saindo das partes para agregar o todo. A salvação tem que deixar de ser individual para se transformar em coletiva. Os tementes do pecado professam um servilismo doentio a seus chefes religiosos, sem racionalidade alguma. São direcionados a focos pessoais, sem nenhuma abrangência. Até porque o “pecado” é essencialmente individualista, egocêntrico. Luta apenas pela busca da própria salvação e não pela salvação de todas as espécies de vida. É o salvar a própria pele, sem se importar com o incêndio na casa do vizinho ou na floresta.

Até mesmo, a visão de espiritualidade ficou ligada às religiões. O que não está correto. Um homem pode ser espiritualista sem, contudo, devotar sua vida à religião. Espiritualidade é um modo específico de viver e sentir a vida, independentemente de dogmas ou crenças. É a certeza de que corpo e espírito são irmãos siameses. O primeiro é o templo onde habita o segundo. Poderia o coração ter vida, se não fosse incrustado, feito um diamante, no corpo humano?

Muitos dos males de nossa era estão ligados ao desprezo para com a carne (corpo), como se fora ela a raiz de todo o mal. Esquecemo-nos de que todos os seres, mesmo as estrelas e galáxias possuem o seu corpo, pois nascem, vivem, morrem e voltam à vida de uma forma ou de outra. Todas as coisas estão interligadas, sejam elas animadas ou inanimadas. A carne desses seres é a matéria que lhes agrega a vida ou as várias formas de vida. Portanto, não é mais possível separar corpo e alma em compartimentos estanques. Tal doutrina em nada beneficia a vida, como um todo. Falar sobre o sagrado exige que se inclua o profano.

Nota:  Imagem copiada de http://omundodenicacio.blogspot.com.br

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O BREJO, A GUERRA E O RÁDIO

Autoria do Prof. Rodolpho Caniato

Depois de viver uma infância tipicamente urbana em Copacabana, havíamos mudado para um sítio em Corrupira, no bairro dos Fernandes. Das luzes do melhor do Rio de Janeiro para a escuridão imaculada daquele sertão paulista.  Eu tinha nove anos. Logo depois se iniciava a Segunda Guerra Mundial. Para mim, as luzes da jovem e vaidosa Copacabana eram substituídas pela escuridão, pelo céu estrelado e também pelo luar do sertão, coisas que nunca vira nem imaginara. O céu da cidade, cuja presença nunca notara, agora se apresentava num esplendor que me deixou deslumbrado. Era preciso aprender a andar na escuridão, pelos caminhos rústicos trafegados apenas a pé, por carroças ou animais. O luar desconhecido na vida da cidade, além da poesia, tornava os caminhos bem visíveis; mudava muito a vida da gente.

Das noites no sertão ficaram em mim impressões e lembranças que nunca se apagariam. Além do luar e do céu estrelado, a familiaridade com todo um mundo de ruídos da noite: os latidos distante dos cães que guardavam terreiros, as corujas e os curiangos piando seus solos e, como grande “fundo”, o coaxar da saparia pelos brejos. Se todo o mato tem uma grande variedade de ruídos noturnos, os brejos têm algo de especial. Aí vivem, numa imensa variedade e proximidade, sapos, sapinhos, sapões, rãs e pererecas, além de aves, cobras, preás e uma multidão de insetos aéreos e terrestres. No verão, essa variedade se enriquece com vaga-lumes que riscam com sua suave luz a escuridão da noite. É interessante notar que essa espantosa diversidade de seres vivos “dá expediente” e “funciona” plenamente na mais completa escuridão.

Algumas dessas “descobertas” pude fazer muito cedo, ainda criança. Com um precário lampião a querosene ou com a mais “avançada tecnologia” da época, um lampião a carbureto. Com ele fazia “expedições” para pescar em pequenos riachos ou para caçar rãs, logo depois das chuvas. A simples presença de uma pequena luz, não só mostra como alvoroça toda a vida do brejo a seu redor.  A forte impressão da grande variedade e a presença perturbadora da luz sobre a vida do brejo ganhariam no futuro, para mim, um significado muito maior. É que meu avô paterno, como muitos outros vizinhos, era viticultor, italiano, e andava muito ansioso por notícias da guerra, que alvoroçava toda a vida da Europa e, em particular da Itália. Naquele lugar ermo, sem luz, a única maneira de obter alguma notícia seria um rádio. Não só não se tinha rádio como não havia vestígio de iluminação elétrica na região. A única lâmpada ficava na distante estaçãozinha de Corrupira, a alguns quilômetros de casa. Seria preciso arranjar um rádio e algo muito mais difícil: produzir a necessária energia elétrica.

Não só me lembro como acompanhei cada passo e ajudei meus tios a montar uma mini hidrelétrica para fazer funcionar o velho e grande rádio que mais parecia um armário, tendo seu interior preenchido por  grandes lâmpadas: as “válvulas”. Obviamente, se esperava que, além de fazê-lo funcionar, a mini-hidrelétrica deveria  acender também algumas lâmpadas para diminuir a escuridão em que  todos vivíamos imersos à noite. Depois de semanas de trabalho, finalmente o pequeno “dínamo” de carro começou a rodar, acionado por uma polia acoplada à roda d´água de uns três metros de diâmetro. Esta por sua vez era tocada pela água, num pequeno desnível em nosso regato, que passava próximo ao brejo.

Com grande expectativa e ansiedade, o velho rádio foi ligado na presença de vários vizinhos que haviam acompanhado e esperado aquela montagem. As ondas curtas só podiam ser sintonizadas à noite, mesmo porque de dia todos trabalhavam na enxada. Mais que alguma notícia fragmentada, o que mais se ouvia daquele rádio eram ruídos: silvos, “pipocas”, assobios, estalos e “descargas de estática”. Mesmo assim, nossos vizinhos mais próximos, vinham para saber se se havia conseguido algum fragmento de notícias da guerra.

Juntamente com a “linha” constituída de dois arames, que trazia e energia elétrica do dínamo, instalado lá no rio, próximo ao brejo, meus tios haviam instalado uma lâmpada para iluminar o caminho para algum reparo à noite. Aquela lâmpada, muito fraquinha, não iluminava muito mais que nossos lampiões a querosene. Ela ficava sobre um pequeno poste à beira do cominho que, pelo brejo, ia da casa até a pequenina “usina”. Apesar de fraca, aquela lâmpada, instalada na beira do brejo, alvoroçou toda vida que até então ali se desenrolava normalmente em plena escuridão.

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